(continuação do Conto)

E hoje eu voltei. Fiquei 16 anos sem visitar a fazenda Palmeiras, pois com a morte do meu bisavô Chiquinho, tudo mudou, e, com o tempo a casa foi se deteriorando e minha família nunca mais voltou lá ou tocou no assunto. Voltei e juro que ativei neurônios de lembranças que eu achava não ter mais. O caminho para mim foi quase irreconhecível, e desde o começo passei com o rosto grudado na vidraça da Meriva lotada, buscando identificar qualquer sinal conhecido, qualquer uma das porteiras que eu tinha tanta dificuldade em abrir quando era menina e ia com meu pai ali no nosso Monza cor de vinho.

Paramos primeiro na sede da fazenda e visitamos uma porção de pessoas que moravam por ali, em casinhas do lado da administração. As pessoas responsáveis por cuidar do andamento do lugar eram as mesmas 16 anos atrás, quando as conheci, e as mesmas do últimos 34 anos ou mais. Um tempo tão longo cuidando de algo para uma família cria relações fortíssimas com seus integrantes, e foi assim que vi Zé Preto quando abraçou minha avó, com lágrimas nos olhos, após tantos anos em vê-la. Ao conversarem, percebi que minha avó (intelectual, professora, culta) errava o português e caprichava no sotaque mais caipira imaginável. Percebi que minha família toda fez isso. Eu fiz isso. Não foi consciente, nós apenas nos tornamos como aquelas pessoas, como se deixássemos que uma parte do passado se fizesse presente. Minha avó falava com uma dona de sítio, eu falava como criança da roça e, sinceramente, queria escorregar no monte de areia do lado da sede. As crianças desciam.

Minha bisavó também foi levada, com sua cuidadora, e todos trataram de falar muito alto para que ela também pudesse ser saudada com apropriada animação. Meu primo e minha tia, como eu e minha mãe, tínhamos ido junto para relembrar do local e colher umas laranjas. Quando visitamos os outros lugares de minha lembrança, a casa principal, o lago, a antiga casa do Zé Preto, tudo começou a ficar mais vívido para mim. Aqueles eram locais com as maiores memórias. Quando revi Raquel e Daniel, sabia que conhecia aqueles rostos, mesmo que tivéssemos sete ou oito anos quando deixamos de nos ver. Daniel estava casado com uma moça religiosa de cabelo batendo na bunda e tinha um filho de cinco anos. Raquel, apesar de mais velha, nunca tinha namorado mais que dois meses e mal saía da fazenda para ir à cidade. E a quase palpável falta de amigas a levou a me monopolizar durante toda tarde, me arrastando para passeios pela sede e por assuntos repetitivos e desinteressantes. Porém, eu via tudo aquilo como algo diferente e novo. Tinha de me esforçar para entendê-la, tamanha sua dificuldade em falar as palavras pausadamente e claramente. Perguntou o nome de todos os meus amigos, quis saber quais deles eram solteiros. Quando falei que ela deveria frequentar a mais a cidade, já que passava o final de semana sozinha, deu risada e disse "Ah, é bom né... se distraí, dá uma volta, í na sorveteria...". Essa frase foi repetida com essas exatas palavras, três vezes; duas delas seguidas. Me viu guardando o celular no bolso e quis ver. Incomodamente, passou por todas as fotos da minha última viagem, a Porto Alegre, e comentava em cada uma delas. "Esse é seu namorado?", "Bonita cidade", "Cê tava com frio!". Antes que conseguisse tirar o celular das mãos dela para evitar que visse fotos comprometedoras (não sei o que poderia ter ali), Zé Preto (nunca soube o nome dele) chegou perto com cheiro fortíssimo de cigarro e palha e quis saber o que víamos. Quando todas as perguntas foram propriamente respondidas "quem é esse rapaz?", "o que você foi fazer lá?", "isso é outro país?", Zé Preto me olhou fundo nos olhos e disse que namoro a distância dá certo não, tem futuro não. Imagino só, nem tem a mesma moeda, pode nem falar a mesma língua... qual moeda que eles usam lá? Porque aqui usamos... qual o nome mesmo? Cruzeiro! Aqui usamos cruzeiro...

Consegui meu celular de volta. Esqueci de dizer que estávamos em uma festinha de aniversário de um rapazinho que fazia seis anos. Mesmo sem saber quem éramos, ao ver o carro chegando, ele esperou todos descerem para mandar a pergunta:

"Presente, tia? Tem?"